Continuando a série de posts sobre a vida nos Estados Unidos, falo neste post sobre cultura, amizades, diversidade e imigração.
Leia também o primeiro post da série.
Vale lembrar que o meu objetivo com estes posts não é formar opinião de ninguém. Apenas quero contar as coisas a partir da minha perspectiva, vivendo aqui há mais de dois anos, e tendo visitado o país inúmeras vezes nos últimos 11 anos.
Cultura e amizades
Falar sobre cultura vivendo na Califórnia é bem diferente do que se eu vivesse em outro estado. Como eu conheço vários outros estados, tenho uma ideia das diferenças encontradas por aqui.
O povo americano é um pouco diferente do brasileiro em certos aspectos, principalmente na questão de “calor humano”. Isso é uma coisa que eu sinto bastante falta do Brasil. Os brasileiros em geral são muito aptos a fazer amizades, se enturmam muito mais, convivem mais, etc. A vida em geral é mais alegre no Brasil. É bastante comum colegas de trabalho terem relações sociais fora do trabalho, suas famílias se conhecem, etc, e muitas vezes se tornam grandes amigos pro resto da vida, mesmo que deixem de ser colegas. Nos EUA, isso é bem diferente. As pessoas em geral são mais quietas, fechadas, e normalmente possuem círculos de amizades onde é difícil entrar. Não é comum ver colegas de trabalho terem relações sociais fora do trabalho, mesmo que sejam bons amigos no ambiente profissional.
Eu tenho bons amigos no trabalho, de vários países, inclusive nascidos aqui. Tirando os eventos da empresa, eu acho que nunca encontrei nenhum deles fora do ambiente de trabalho. Vindo do Brasil, onde a maioria dos meus melhores amigos vieram a partir do meu trabalho, isso é bem estranho.
Praticamente todos os nossos melhores amigos aqui são brasileiros. Alguns a gente já conhecia antes de mudar pra cá e outros encontramos por aqui mesmo. Tem bastante gente do Brasil morando aqui e há grupos na Internet pro pessoal se encontrar e organizar coisas. Geralmente quando vamos a algum aniversário, ou quando pessoas vêm aqui em casa, não-brasileiros são exceção.
Pra quem não conhece a cultura e vem de um país onde a coisa é diferente, pode achar que o povo aqui é arrogante e discriminatório. Eu acho isso incorreto, sinceramente. É um aspecto cultural das pessoas, coisa de muitas e muitas gerações. Se você quer ser um cidadão do mundo, você tem que ter a cabeça aberta e respeitar a cultura dos outros, mesmo que você não concorde com algumas coisas.
Alguns meses depois de começar a trabalhar no Facebook, eu visitei o nosso escritório em São Paulo. Eu fiquei muito chocado com a diferença. Para ser claro, eu adoro trabalhar aqui na sede em Menlo Park. O ambiente é super bacana e tal. Mas o escritório em São Paulo é diferente. Mais parece uma família feliz. O nível de relacionamento é muito melhor, a quantidade de pessoas sorrindo é muito maior. Mesmo eu sendo um estranho, eu me senti extremamente bem-vindo. Me levaram pra almoçar, me convidaram pra jantar, etc. Em poucos dias fiz boas amizades lá, e me encanta muito o fato de eles serem todos grandes amigos entre eles.
Tem um ponto, porém, que me envergonha muito no povo brasileiro, que é o respeito ao próximo, principalmente ao estranho. Eu li um artigo há um tempo de um estrangeiro que passou um tempo no Brasil, e tinha uma frase que eu nunca esqueci:
– Os brasileiros se amam, mas não se respeitam
Coisas como furar fila na cara dura, se esforçar pra ganhar vantagem em cima dos outros, ser agressivo no trânsito, não permitir que uma pessoa atravesse a rua com segurança, etc. Essas coisas me chocam, porque é totalmente incompatível com o clima harmonioso do povo em outros aspectos.
Aqui as pessoas podem ser mais frias e não dar muita conversa, mas é bastante comum ser tratado com respeito e cordialidade. Se você começar a atravessar a rua, é bem comum pararem bem longe e não vão fazer cara feia porque você está tomando o tempo deles, e ninguém atrás vai ficar desesperado buzinando. É difícil generalizar, porque se vê exceções, claro, mas no geral a coisa é bem civilizada.
Um exemplo comum e lamentável no Brasil é um desrespeito implacável nas estradas. Gente colocando a própria vida em risco, e dos seus passageiros, pra querer ganhar vantagem na marra, ultrapassando em local proibido, em curvas, em serra, etc. Se você está andando no limite de velocidade, é bem comum o carro de trás estar grudado em você, lhe “dando uma lição” por não estar dirigindo a 150 km/h. Em dois anos aqui, eu nunca vi isso acontecer. Uma transgressão comum aqui, porém, é não respeitar que a faixa da esquerda é a faixa mais rápida.
Diversidade e imigração
Muitas coisas boas aconteceram na minha vida nos últimos anos e uma das coisas que eu sou mais agradecido é ter a oportunidade de trabalhar num ambiente com tanta gente diferente, vindo de todos os cantos do mundo, com diferentes religiões, crenças, costumes, gostos, etc.
O Brasil é um país bem grande, com 200+ milhões de habitantes, um território enorme e tal, mas por incrível que pareça, todo o povo é muito parecido. Todo mundo fala o mesmo idioma, come as mesmas coisas, tem gostos parecidos, todos casam com todos, e assim vai. Isso é fantástico! Não vou negar o fato que existe bastante discriminação entre alguns grupos, infelizmente, mas ainda assim, eu diria que o brasileiro é bastante uniforme.
Mesmo tendo viajado o Brasil inteiro e por vários outros países, foi um grande choque cultural pra mim começar a conviver de fato com tanta gente diferente. Não apenas ver pessoas, mas conversar com elas, ouvir suas estórias, tomar decisões de trabalho juntos, levar em considerações pontos de vistas radicalmente diferentes do seu…
Nos primeiros dias do trabalho, todos os novos funcionários passam uma forte orientação sobre vários aspectos da vida na empresa. Uma das palestras foi sobre diversidade e alguns cuidados culturais. Por exemplo, no Brasil, e até mesmo nos EUA, é bastante comum as pessoas se tocarem, como um tapinha no ombro, etc. Pra nós, são coisas inofensivas e até cordiais. Para algumas culturas, isso é extremamente grosseiro e pode até mesmo ser entendido como assédio sexual. No Brasil, é bastante comum as pessoas se darem um abraço e até trocarem um beijo ao se conhecerem pela primeira vez. Você, especialmente se for homem, pode entrar em um sério problema se você tentar fazer isso com mulheres de algumas culturas, especialmente muçulmanas. Olhar isso pela televisão e achar curioso ou engraçado é uma coisa. Quando uma colega do seu lado pode ficar extremamente ofendida por uma atitude “inofensiva” sua, o problema é bem diferente.
A minha atitude hoje em dia aqui ao cumprimentar uma pessoa que eu não conheço é evitar qualquer contato corporal, especialmente com mulheres. Quem é de cultura ocidental normalmente vai querer apertar sua mão, então eu respondo prontamente. Eu procuro apenas não iniciar o contato para evitar constranger a pessoa.
Vários estados nos EUA estão finalmente legalizando o casamento de pessoas do mesmo sexo. Nós temos uma comunidade gay bem grande na empresa e foi super bacana quando a Califórnia liberou esses casamentos de vez em junho de 2013. No meu time já houveram alguns casamentos entre homem/homem e mulher/mulher. Eu fico muito feliz em ver a felicidade deles em poder assinar um papel, coisa que lhes era, e ainda é em muito lugares, proibido por pura burocracia e discriminação social. Pode ser apenas um papel, mas simboliza muita coisa para quem antes era excluído. Eu não sei comparar Brasil e EUA nesse aspecto. Eu vejo uma certa discriminação nos dois países e também vejo uma melhora na aceitação nos últimos anos.
Eu me criei sempre ouvindo de toda a sociedade na minha volta que ser gay era um defeito e algo que as pessoas deveriam se envergonhar de ser. Isso é extremamente estúpido e eu muito espero que as novas gerações estejam sendo educadas de forma diferente. Fico feliz de poder criar nossos filhos num ambiente extremamente diverso. Pra eles, ninguém vai ser melhor ou pior, independente de qualquer coisa que não seja caráter.
Eu tenho vários amigos judeus na empresa, alguns que vieram de Israel inclusive. Tenho bons amigos muçulmanos também, e um dos meus melhores amigos na empresa é de família palestina. No último conflito entre Israel e Gaza, eu assisti a coisa sob uma óptica incrivelmente diferente do que ver as notícias pelo Jornal Nacional. Foram semanas bem tensas pra eles, porque todos tinham opiniões muito fortes sobre assunto e ainda assim tinham o dever de manter o respeito e o clima profissional no trabalho. Eu não gosto de formar opinião sobre coisas que eu tenho pouco contexto, e com esse conflito não foi diferente. Mesmo com a mídia massacrando Israel, eu sempre gostei de ouvir abertamente a opinião dos meus amigos que vieram de lá, muitas delas bem fundamentadas. Da mesma forma, conversei bastante com pessoas com opiniões radicalmente diferentes. É muito interessante ouvir essas coisas de pessoas que têm fortes ligações com o que está acontecendo.
Na mesma linha, quando a Rússia tomou a Crimeia da Ucrânia, ficou um clima interessante no meu time. Eu tenho um colega de cada país, os dois muito boa gente e bem amigos entre eles. Como era de se esperar, os dois têm opiniões diferentes sobre o assunto, mas levaram a situação na boa. Quando aquele Boeing 777 foi abatido na divisa entre os dois países, o assunto ressurgiu no time, mas ninguém faltou com respeito com ninguém.
Mesmo tendo colegas de vários países diferentes, todos ficam muito chocados quando eu falo do meu sequestro do Brasil e que isso é algo muito comum no país, por mais inacreditável que possa parecer. Um colega, porém, não ficou nada surpreso, e até me desafiou que o Brasil é bastante seguro, comparando com o seu país de origem, o Paquistão. Ele me contou algumas estórias sobre ódio religioso, terrorismo, fundamentalismo islâmico, etc. Não coisas que ele viu na TV, mas coisas que sua família e seus amigos viveram na pele. É assustador. O mais interessante pra mim é como o contexto que você vive define a visão que você tem do resto do mundo. Isso pode parecer extremamente óbvio, mas a minha ficha só começou a cair conversando com pessoas com perspectivas bem diferentes da minha.
Tem uma frase interessante aqui: nada é mais americano do que um imigrante.
Todos os países nas Américas são países de imigrantes e todos começaram a ser colonizados mais ou menos na mesma época. Olhando por aí, os EUA não é diferente do resto, mas há um ponto bem distinto aqui. O EUA recebe um fluxo constante de imigrantes até hoje, coisa que cessou na América Latina depois das guerras. A Califórnia é o estado com o maior número de imigrantes nos EUA. Estima-se que 1/3 da população não nasceu nos EUA. Essa é a principal razão de aqui ser um estado tão diferente do resto do país. Em geral, nenhum país gosta de imigrante, e aqui não é diferente. Como na Califórnia isso é tão comum, nós praticamente não observamos discriminação alguma. Porém, eu tenho consciência de que se nós vivêssemos em outro estado com pouca imigração, isso seria bem diferente.
Na área de tecnologia, o forte da imigração vem da Índia e China. A principal razão não poderia mais óbvia: cada um deles tem mais de 1 bilhão de habitantes. Fora isso, são dois países que formam muita gente nessa área. Se vê muito europeu por aqui também, mas naturalmente de diversos países. Na rua que moramos há apenas 8 casas. Nós brasileiros, um casal que o homem é do Vietnã e a mulher da Coreia do Sul e as outras 6 famílias são indianas. No final de outubro, várias casas estavam decoradas para o Diwali (festival das luzes), que é muito celebrado na Índia.
Infelizmente, se vê pouquíssimos latinos em áreas altamente especializadas. Eu conheço vários brasileiros na área, mas comparando com a quantidade de indianos e chineses que eu conheço, não é nada. Além do Brasil, eu conheço dois colegas da Argentina, um do Uruguai e um que acabou de ser contratado do Chile. Mais ninguém. 🙁
Quando se fala de imigração recente nos EUA, há dois grupos muito distintos:
1) Pessoas altamente educadas, que vêm pra cá para estudar ou trabalhar em posições de alta especialização, com vistos específicos pra isso (F1, H1-B, L1, etc). Como eu disse acima, Índia e China dominam majoritariamente esse grupo. Todas essas pessoas são legais aqui e boa parte já é imigrante permanente (green card), ou está com o processo andando e seguramente serão aprovadas. Esse é o grupo que eu me incluo, com visto H1-B e green card andando.
2) Pessoas com baixa educação, normalmente sem nenhuma profissão, que vêm pra cá fugindo das condições miseráveis de seus países de origem. A América Latina, principalmente México, domina esse grupo de longe. Grande parte das pessoas que vieram mais recentemente são ilegais, mas tem uma boa parcela que conseguiu se regularizar. Esse grupo não inclui todas as pessoas de origem latina, porque muita gente de origem latina/hispânica nasceu aqui e portanto são cidadãos americanos, mesmo seus pais/avós/etc sendo ilegais no país.
Obviamente existem exceções. Já vi latinos muito bem sucedidos por aqui, assim como asiáticos vivendo em condições bem pobres. Mas não é o mais comum.
Quando eu menciono “imigração recente”, eu me refiro às pessoas que imigraram nos últimos 10-15 anos, depois que ficou muito difícil imigrar pra cá. Existe também um grande grupo de pessoas que imigrou há mais de 15-20 anos quando a coisa era bem mais simples. Essa é uma das razões de você ver bastante asiáticos por aqui não necessariamente trabalhando com coisas especializadas.
Imigração é um tema super complexo e eu estou simplificando até exageradamente aqui. Não use este texto como fonte de verdade, por favor. Existe bastante literatura boa sobre o assunto na Internet.
Uma coisa que é muito fácil observar aqui é que as pessoas ocupando as posições com menores remunerações normalmente falam espanhol. No meu trabalho, por exemplo, isso é muito comum. Quase todo o pessoal de limpeza e cozinha, por exemplo, é latino. Quem não entende espanhol, acaba não percebendo, mas é verdade. Como é comum da cultura latina, todos são super alegres.
Todos os latinos que eu conheço aqui são excelentes pessoas, que vieram pra cá buscando uma vida melhor pra si e seus familiares. Viver ilegal em qualquer país é algo que eu não recomendo pra ninguém. Mas entre viver ilegalmente em um país civilizado e viver em regiões completamente dominadas por cartéis de tráfico de drogas, com gente morrendo e desaparecendo todos os dias, o que você escolheria? 3,5% da população (11 milhões) dos EUA está aqui ilegalmente, e essa é uma das principais razões. Sinceramente, eu não julgo ninguém por isso, e provavelmente até faria o mesmo diante das mesmas circunstâncias.
Para quem não é muito familiarizado com a vida nos EUA, pode achar que eu estou sendo preconceituoso, mas não estou, de coração. Eu vejo isso todos os dias e não me faltam exemplos pra sustentar o que eu escrevi. Realidade é realidade e não se pode negar.
Continue sugerindo sobre assuntos para eu cobrir aqui. Lembrando que eu só vou cobrir coisas com as quais eu tenha alguma experiência própria, senão os textos vão virar documentários chatos, sem nenhum toque pessoal.