Batendo asas

O inverno no sul do Brasil já está se anunciando, pra tristeza de quem não gosta de acordar muito cedo, e pra alegria de nós aviadores (depois explico por que).

Hoje o relógio despertou às 6h00 da madrugada. Feriado, dia perfeito para dormir até meio-dia (e assim o faria, claro, se não tivesse voo). Estava um friiio fora, cobertor tão quentinho dentro. Muito preguiçosamente, peguei o celular para pegar a observação meteorológica do aeroporto Salgado Filho, só pra confirmar que devia estar um puta nevoeiro e eu ia poder continuar dormindo feliz.

METAR SBPA 210800Z 00000KT CAVOK 10/10 Q1022

SBPA = Aeroporto Salgado Filho, Porto Alegre
210800Z = Observação do dia 21, 0800 UTC (5h00 local)
00000KT = vento calmo
CAVOK = teto e visibilidade normal pra voo visual
10/10 = temperatura e ponto de orvalho ambos a 10 graus
Q1022 = pressão alta (típico de dias frios)

CAVOK era tudo o que eu não queria ler. 10 graus, 100% de umidade, nada de vento: as condições perfeitas para um grande nevoeiro. Mas não, eu teria que levantar. Estupidamente esperei a observação das 6h00, que estava exatamente igual. Ainda não contente, levantei e abri a janela. A observação só podia estar mentindo. Minha referência de visibilidade aqui de casa, no alto do bairro Petrópolis, é o morro da polícia. Se eu ver ele, a visibilidade está muito boa. Lá estava ele, lindo, cheio de antenas piscantes me dando bom dia. Puta que pariu, é pra eu levantar mesmo.

10 segundos depois de lavar o rosto eu estava super feliz. CAVOKasso, nada de vento, dia lindo, frio, tudo que qualquer piloto sonha. Me fardei, um copão de iogurte, e me toquei pro aeroclube. O sol não tinha nascido ainda, mas a aurora já estava lá anunciando a sua chegada em breve.

Em dias frios, com alta pressão, o ar está muito mais denso, e isso facilita muito na sustentação do avião no ar. Ademais, quanto mais denso o ar, melhor a performance do motor, pois com mais ar, se tem uma queima melhor, logo o motor produz mais potência útil. Um bom observador nota essa diferença nos carros. Como muito raramente usamos toda a potência que o motor do carro pode nos oferecer, isso não faz diferença na prática. Num avião não. Decolamos com o motor “full power” e qualquer cavalo a mais faz uma grande diferença na performance e na segurança da operação. Além de tudo isso, o ar frio normalmente é “laminar”, muito estável. Fica uma delícia de voar. Em dias muito quentes, como há muita movimentação vertical de ar (convecção), é um saco, você briga com a turbulência, e geralmente só encontra ar laminar lá pelos 3.000 pés.

Hoje comecei uma fase muito importante do meu treinamento, que são os TGLs (touch-n-go landings – toque e arremetida). Basicamente decolamos, fazemos o circuito de tráfego padrão, pousamos, decolamos de novo e assim sucessivamente por uma hora. Se o avião não estiver estabilizado na final, arremete-se ainda em voo. É a parte mais complexa de todo o treinamento inicial pra piloto, pois a carga de trabalho é imensa. Algo do tipo:

  • Flaps 15
  • Potência total
  • Anuncia mínimos atingidos (2100 RPMs, pressão do óleo ok)
  • Solta o avião do chão a 55 mph
  • Sobe a 65 mph até 320′ (altitude de aceleração)
  • Anuncia em caso de pane, pouso em frente, se der ainda na pista
  • Flaps up e segue subida a 70 mph
  • Checklist pós-decolagem
    • Flaps up
    • Motor 2300 RPMs
    • Farol de pouso desligado
    • Instrumentos checados (pressão, temperatura…)
  • Curva à esquerda pra perna de través
  • Curva à esquerda pra perna do vento
  • Cruzando 520′, anuncia em caso de pane, retorna pra pista (altitude de retorno)
  • Nivela a 620′, motor 2200 RPMs
  • Checklist pré-pouso
    • Nível de combustível
    • Seletoras de combustível abertas
    • Mistura rica
  • Cruzando o través do ponto de toque, potência mínima, aquecimento do carburador aberto
  • Drena a velocidade pra 70mph e começa o voo planado
  • Curva à esquerda pra perna base
  • Rajada pro motor não esfriar demais
  • Curva à esquerda pra final
  • Alinha com a pista, define a rampa
  • Aos 100′ de altura, decide se vai pra pouso ou arremete, se não estiver estabilizado
  • Pouso estolado, com as 3 rodas no chão
  • Alinha o avião corretamente na rolagem na pista
  • Fecha o aquecimento do carburador
  • E tudo de novo…

Em uma hora, sem vento, dá pra repetir a sequência umas 12 vezes até. Hoje, como eu fiz alguns repasses, pois fazia 3 semanas que não voava, repeti a sequência 8 vezes. Fiz 6 pousos bem sucedidos e tive que arremeter duas vezes porque calculei a rampa de planeio mal. Na verdade eu fico com medo de bater nas árvores do condomínio Terra Ville, que fica na final na cabeceira 26, então tenho a tendência de chegar alto na pista. É um pouco de ilusão de óptica, eu sei, mas vai convencer o meu cérebro disso. Enfim, falta de prática. Quando pouso na cabeceira oposta (08), geralmente calculo a rampa certinho, pois não tem obstáculos na final.

Como dá para ver na sequência acima, é uma carga de trabalho enorme. Lembrando que tem que fazer tudo isso coordenando com o instrutor, que na verdade é um co-piloto ali (quem voa é o aluno), e coordenando as manobras via rádio com as outras aeronaves na área.

Cada vez meu instrutor faz menos coisas, o que está correto. Ele me diz o que fazer, me tira dúvidas e o resto é comigo. Claro se eu fizer uma cagada, ele vai tomar conta. Mas a ideia de agora em diante é que eu pare de voar “apoiado” nele. Quando quero alguma opinião sobre qual procedimento tomar, normalmente a resposta é sempre a mesma: “não sei, tu que és o comandante”. Acho legal isso, pois me força a tomar atitudes.

Pilotar um avião é fácil. A diferença entre um comandante e um mero piloto está nas atitudes. O avião voa rápido e não pode parar pra esperar, então você tem que ser rápido e muito assertivo nas decisões. Felizmente minha personalidade me ajuda muito nisso, pois costumo ter uma linha raciocínio bastante rápida e objetiva.

Voos no Google Earth
Voos no Google Earth

Tenho traçado quase todos os meus voos com o GPS e baixado tudo pro Google Earth depois. É uma maneira muito eficiente de analisar como está meu padrão de manobras, especialmente as que precisam de referência em solo, como correções de vento. É bastante divertido ficar analisando o voo depois. A riqueza de informações que o GPS oferece é muito boa, como posição lateral e vertical (altitude), rumo, velocidade e hora exata em cada ponto plotado. Clicando na imagem acima, você pode baixar uma coleção de voos no formato KMZ.

Fechei 15 horas hoje. Espero fazer meu primeiro voo solo lá pelas 25 horas, quem sabe. Tudo vai depender da minha eficiência nos TGLs de agora em diante.

Agradeço muito ao Comandante Felipe Niche, meu instrutor, pela paciência e motivação. Certamente deve ser uma grande satisfação pro instrutor “dar asas” aos alunos também.

Conforme a coisa for evoluindo, vou postando mais.